O HOMEM E A PAISAGEM
A Paisagem vai além da sua definição
No passado dia 28 de Fevereiro de 2021, foi publicado na Newsletter da APAP (ver artigo aqui) a Mensagem do Delegado, texto da minha autoria. Deixo-vos aqui o artigo na íntegra.
O homem inventou este conceito para poder falar de si mesmo através de representações dessas paisagens e de imagens. Ou seja, uma representações de nós mesmos, pois são um reflexo do ser humano e de tudo o que tem manipulado e as consequências dessa manipulação. Modificamos o ambiente, incluindo todos os seus elementos naturais, tudo através das nossas atividades materiais, de necessidades políticas, das perseveranças económicas, dos ordenamentos jurídicos, etc. Mas depositamos essencialmente a nossa cultura e a nossa conceção de mundo – os nossos estilos de vida, as crenças religiosas e pulsão espiritual, os nossos símbolos e valores. Criamos afinidade e reciprocidade – sentido de relacionamento entre o Homem e a Paisagem.
Segundo um dos textos de Tim Ingold – “The Temporality of the Landscape”, o autor afirma que é na Paisagem que o conhecimento pode ser interiorizado (ou seja, o conhecimento processa-se a partir de um conjunto de práticas no mundo real, com pessoas, objetos e de relacionamentos). É tudo um sistema preceptivo, onde se desenvolve uma sintonia e uma sensibilidade com esse mesmo sistema (não absorvendo representações mentais ou esquemas conceituais). No desenvolver deste processo cognitivo atuam: o cérebro, os órgãos do nosso corpo e todos os nossos sentidos e o próprio ambiente (com aspetos específicos que localizam o sujeito no mundo). Esta paisagem é constituída por um longo registo de vidas e trabalhos que foram passados de geração em geração e que deixam as suas marcas.
Existe uma articulação entre a paisagem para o sujeito e o tempo, onde não existe tanto uma vontade de invocar imagens “internas” e que se encontram guardadas na nossa mente, mas sim uma perceção de um ambiente que transmite um passado e que não deve ser esquecido. É a paisagem que origina as relações entre o sujeito e o ambiente. Ela é formada à medida que vão surgindo acontecimentos e à medida que se criam histórias na sua superfície (tudo isto interligado com o ciclo de vida de fauna e flora que também a habitam).
As paisagens são, portanto, um processo em constante funcionamento.
Este autor entra com o conceito de Taskscape que nos fala não só nas tarefas realizadas na paisagem, como também relaciona as interações do sujeito com a paisagem e são essas interações que devem ser incorporadas com um recurso duradouro na paisagem, sendo um elemento muito importante na história do mundo e dos sujeitos que nele habitam. Pontanto, o conceito de Taskscape tem sido um recurso para incluir a história e a cultura no conceito de Landscape, pois o sujeito ao habitar o mundo envolve inúmeros traços históricos e culturais que acabaram por ser incorporados na paisagem (sendo traços de todos os seres e objetos que o habitam). Na Paisagem cada elemento é intrínseco às relações que estabelece com os outros. Todos os sentidos e acontecimentos relacionados à paisagem não se encontram nela, mas são agrupados a partir dela.
A Paisagem é o reflexo da história do próprio Homem, pois “narra” todos os feitos humanos e todo o seu desenvolvimento. A Paisagem Cultural – logos – representa o discurso da memória, da história e da cultura, sendo assim o paradigma de valores éticos e estéticos. Esta continua em desenvolvimento – provém da Antiguidade – enriquecendo-se a cada século que passa, modelando-se segundo ideias, sentido, expectativas dos povos que a construíram e integram-se de indivíduo para indivíduo. Cada cultura tem-se expressado segundo um património de costumes e valores tradicionais, um universo de imagens e símbolos que estabelecem códigos de comportamento e padrões de escolha desenvolvidos dentro dessa mesma cultura – uma ética compartilhada. Nos dias de hoje, o Homem apresenta-se como um ser dotado de experiências pessoais e conhecimentos múltiplos, onde a paisagem revela esse mesmo conhecimento, manifestando-se como motivo de enriquecimento.
Não podemos esquecer o conjunto de relações ecológicas entre os seres vivos, o Homem e a parte não viva da Natureza. Estas relações ecológicas permitem subvalorizar questões como “o húmus do individualismo”. Aldo Leopold, no seu tema “The Land Ethic”, integrado na obra “A Sand County Almanac” (1949), expõem que a Ética da Terra convoca a Paisagem como sendo uma oradora que exprime os valores presentes entre as relações que existem na sociedade com a natureza.
A principal mensagem que este autor nos tenta deixar é a de que todos os seres vivos encontram-se integrados numa mesma comunidade – Comunidade Biótica (conceito que chama à atenção para a relação de interdependência dos seres vivos assim como toda a sua autonomia). Leopold acredita que quando se preserva a beleza, a estabilidade e a própria integridade desta comunidade biótica, tudo se encontra perfeitamente correto no seu funcionamento, sendo o Homem considerado como apenas mais um ser (tentando também chamar a atenção para alguns valores que foram ficando esquecidos na relação entre nós -seres humanos- e a natureza).
Desta forma, ele cria uma crítica um tanto ou quanto antropocêntrica, pois acredita que o Homem é um ser que apresenta um otimismo tecnológico ingénuo, que não está consciente dos seus limites e que ignora, de certa forma, a sua dimensão ecológica, acabando também por ser um indivíduo egoísta. Estas críticas podem levar a uma interpretação incorreta daquilo em que o autor acredita, induzindo a conclusões que podem por em risco a própria dignidade do homem, mas Leopold não é de todo um anti-humanista. A Ética da Terra de Leopold abrange fronteiras dessa Comunidade Biótica de forma a incluir nela os solos, a água, a fauna e a flora – um coletivo “terra” – ou seja, uma inclusão de todos seres vivos no nosso universo (pois permitem uma evolução e uma carência ecológica, havendo a necessidade do desenvolvimento de uma consciência ecológica como sinónimo de “saúde da Terra onde vivemos”, ou seja, a capacidade de autorregeneração da mesma).
O Homem não deve ser posto de parte e é importante que ele não seja visto apenas como uma outra espécie no meio de tantas. Ele possui uma forte relação e dimensão ontológica com a mesma, estando ambos “castigados” a uma medida comum (e isto se a natureza não condenar o ser humano por este a condenar a ela). Mas não devemos esquecer que a Natureza não deve suprimir-se em função do Homem, nem deve permitir que a Natureza siga o seu próprio caminho/traçado sem qualquer intromissão por parte humana.
É inevitável a construção por parte do Homem e a sua intervenção na Natureza, mas é importante que não o faça de uma maneira arrasadora, nem pondo em risco os ciclos naturais da mesma. É importante que se tracem limites de forma a que seja possível a coexistência da diversidade – existência de campos formais e contemplativos e de campos vegetais e animais – permitindo a presença dos signos objetivos que refletem a subjetividade do Homem. A paisagem não é simplesmente uma presença fenoménica com leis objetivas da Natureza. A paisagem é precisamente o objeto do próprio sentido da vida do Homem e da existência das sociedades.
Apesar do mundo em que vivemos, somos seres criativos e inteligentes capazes de procurar soluções para os problemas com que nos deparamos hoje. Se tomarmos as medidas necessárias, começaremos uma nova era. Temos hipóteses de acertar, de forma a sairmos de um mundo desconectado e ineficiente de combate à população, para um planeta sustentável.
Dejhenir Reis
Arquiteta Paisagista
BIBLIOGRAFIA
– “The Land Ethic” – Aldo Leopold (Tema integrado na obra de Aldo Leopold, A Sand County Almanac, págs. 115-126, publicada em 1949);
– “The Temporality of the Landscape”– Tim Ingold (publicado por Taylor & Francis, ltd. – Fonte: World Archaeology, Vol. 25, No. 2, Conceptions of Time and Ancient Society (Oct., 1993), pág. 152-174).